Escócia, juízes coloridos e falsas memórias

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Os homens sem ser de preto muito antes de 1994

Uma coisa marcante da Copa de 1994 é que nela, pela primeira vez, os juízes receberam uniformes bem coloridos. Na verdade, foi até a primeira (e única) Copa em que não havia uma opção completamente preta. Mas o uso de uniformes coloridos por parte dos juízes é muito anterior a 1994, tanto no mundo quanto no Brasil.

Confira como essa história tem uma relação curiosa com a seleção da Escócia e a quando exatamente os juízes deixaram de ser (só) os homens de preto também em gramados brasileiros.

Durante a Copa do Mundo de 2022, o site Referee Kit History fez um apanhado histórico dos uniformes de juízes desde a Copa de 1978, quando os juízes tiveram uniformes padronizados pela Fifa pela primeira vez. E aí, claro que já apareceram os primeiros uniformes de juízes que, ao invés de preto, eram vermelhos, já desde 1978.

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Uniformes de 1978. Fonte: Referee Kit History.

O site deixa de fora dois parênteses importantes sobre os uniformes vermelhos. O primeiro é que eles já apareceram em 1974, ficando de fora do levantamento do site por aquela Copa não ter tido uniformes padronizados de juízes (cada um levava o seu, ou recebia na hora sem padrão).

O segundo, e mais importante para o nosso artigo, é que esses uniformes foram criados quase que exclusivamente para juiz que apitavam jogos de uma equipe.


– Juízes para a Escócia

Os juízes de vermelho entre 1974 e 1990 eram quase uma exclusividade da Escócia – e só nos jogos que ela jogava de azul.

Juízes nas partidas da Escócia em 1974.

O quase é porque houve apenas uma exceção: Tchecoslováquia e Kuwait em 1982. Ainda assim, muito possivelmente o juiz foi de vermelho nesse jogo de feliz, porque tinha a opção. Se a Escócia nem tivesse ido para a Copa, é possível que esse uniforme nem existisse.

Aliás, o parêntese dentro do parêntese: esse uniforme vermelho como opção entre 1974 e 1990 coincide com a maior sequência de participações ininterruptas da Escócia em Copas, o que reforça a hipótese de que o uniforme vermelho existia só por causa dela.

A Eurocopa reforça ainda mais essa impressão: a Escócia só estreou na fase final da Euro em 1992, e nela os juízes improvisaram camisas brancas para os jogos da Escócia contra Holanda e CEI, que jogavam de laranja e vermelho.¹ E quando enfrentou a Alemanha, que atuava de branco, voltou a camisa vermelha pro árbitro.

Juízes nas partidas da Escócia em 1992.

É bem verdade que nunca foi uma regra do futebol que juízes precisavam estar de preto, apenas uma tradição concretizada.² Tanto é assim que lá na Copa de 1938, quando a Itália resolveu jogar de preto contra a França (homenagem infame ao fascismo), o juiz entrou no campo de branco sem grandes polêmicas.

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Itália e França em 1938.

Mas tradições são fortes no futebol. E entre aquele jogo de 1938 e a estreia da Escócia em 1974, se passaram 36 anos com juízes apenas de preto em Copa do Mundo. Então, por que mudou, ainda mais se a camisa da Escócia era azul?

Muito provavelmente por conta de dois fatores. O primeiro, claro, é que o azul da camisa da Escócia era muito escuro, daí a mudança do uniforme do juiz ser feita para ela, mas não para times como Iugoslávia, Itália e França. O segundo, muito provavelmente pela popularização das transmissões pela TV, que tornaram o cuidado com o conflito de cores mais rigorosos.

E aqui vale falar do papel da Escócia: se ela não foi a pioneira no tema, conforme já vimos, certamente ajudou muito na sua popularização. Se buscarmos as partidas da Escócia de azul desde meados dos anos 1960, vamos reparar que o juiz fazia essa adaptação mesmo fora de partidas da Copa.

A propósito, fazer esse levantamento é até interessante porque mostra juízes em camisas relativamente clássicas, que se esperam de um juiz da época, porém em todas as cores básicas possíveis: vermelho, cinza, branco, azul celeste, amarelo, verde, laranja…

Observação: na galeria acima, um raro caso de juiz de amarelo com a Escócia sem estar de azul. Como o time visitava Israel, que jogava de branco, talvez o juiz supôs que os escoceses levariam sua camisa principal a campo ao invés da reserva.

E mais. As camisas coloridas vinham por vezes com calção e meiões pretos, em outras com calção na cor da camisa e meião diferente (branco ou preto, como em 1974), em outras com meião na cor da camisa e calção diferente (preto e até um curioso branco), tudo numa mesma cor e até um possível raro caso que a camisa foi de uma cor, o calção de outra (preto) e o meião numa terceira cor (branco).³

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Foto rara de Escócia e Portugal, 1966.

Outra curiosidade interessante dessas imagens é ver que em alguns jogos os juízes e os bandeirinhas usaram cores diferentes entre si (e nem sempre com os bandeirinhas de preto, há um exemplo do juiz de cinza com o bandeira de amarelo). Inclusive, isso ocorreu na Copa de 1974 (aí, sim, com os bandeiras de preto).

Seja como for, os jogos da Escócia foram verdadeiros pratos cheios para os juízes experimentarem com as cores muito antes do que costumamos lembrar.

1- As camisas brancas usadas pelos juízes na Euro 92 eram modelos oficiais da Adidas, não foi um improviso do tipo “pega uma camisa qualquer e costura o escudo por cima”. O ponto é que cada juiz usou um modelo branco diferente, comprovando que não foi algo previsto pela organização do torneio de ter um modelo pré-definido.

2- O que podia existir era regimento interno de determinadas ligas. O Campeonato Inglês, por exemplo, baniu o uso do preto em camisa de jogadores de linha até 1993.

3- Essa combinação é a possibilidade que aparece ao ampliarmos o juiz no canto de uma rara foto do amistoso contra Portugal em 1966, mas pela qualidade da foto (e a posição pouco favorável do juiz nela) é difícil cravar.

– No Brasil, também foi mais cedo

Ao descobrir essa profusão de cores na arbitragem muito antes do que pensava, me voltei para o futebol brasileiro: será que por aqui o hábito também começou antes?

E a resposta é sim, temos árbitros apitando de cores diferentes do preto ao menos desde meados dos anos 1970 (o que pode indicar uma influência dos juízes de vermelho das Copas de 1974 e de 1978). Aqui, a cor mais usada além do preto que achei foi, de longe, o amarelo, seguido de cinza/azul claro (e sempre com calções e meiões pretos).

Jogos do Vasco de preto entre 1978 e 1990.

Faz sentido: há pouquíssimos times relevantes no Brasil que tenham o amarelo como cor principal.¹ Já times de vermelho, a cor escolhida para ser a secundária dos juízes pela Fifa, o Brasil tá cheio. O exemplo de juiz de vermelho acima é de jogo internacional (Vasco e Atlético Nacional, pela Libertadores de 1990).

Para buscar esses juízes pioneiros no Brasil, comecei usando o Vasco de exemplo, com sua camisa preta. E foi tiro e queda. Mas também foi com essa busca que deu para ver que o uso no Brasil foi muito menos regrado como no caso da Escócia.

Sim, por aqui juízes usaram cores em jogos de times com camisas escuras, como Vasco, Botafogo, Ponte e Corinthians (estes últimos, de camisa reserva).

Mas também usaram em jogos onde ela não era necessária. E mais: também eventualmente usavam preto mesmo apitando jogos desses times, mesmo com eles de camisa escura. Embora em baixa qualidade, dois exemplos acima de uso de amarelo e celeste sem ninguém de preto em campo, além de um do juiz de preto com o Vasco de preto em 1979, quando a camisa amarela já era bastante usada no Rio.

Ainda assim, fica o registro que os juízes brasileiros também adotaram camisas além do preto muito antes dos anos 1990.

1- Se pegarmos a lista dos quatro maiores campeões estaduais de todas as UFs do Brasil, só aparecem seis times com camisa principal amarela: Brasiliense (DF), CENE (MS), Criciúma (SC), Interporto (TO), Santana (AP) e Ypiranga (BA). Desses, só os dois últimos foram campeões antes de 1985 (a maioria dos outros nem existia antes dessa data).

– Uma falsa memória coletiva

Feito esse levantamento, o que falta responder, então, é por que a gente considera a Copa do Mundo de 1994 como o marco no uso das cores pelos juízes.

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Uniformes de 1994. Fonte: Referee Kit History.

Aí a resposta é simples: Copas são os grandes palcos do futebol, e a Copa de 1994 realmente foi a responsável por deixar tudo muito mais normal ao apresentar vários modelos coloridos¹ e sem a necessidade de uso de cores só quando estritamente necessário.

A Premier League, formada em 1992, já havia lançado um modelo turquesa na sua temporada inicial dois anos antes da Copa. Mas Copa é Copa, e a partir de 1994 realmente as cores se abriram para os árbitros.

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Uniformes da Premier League, 1992. Fonte: Referee Kit History.

Agora, outro ângulo para encarar essa questão é “por que não nos lembramos tanto dos juízes coloridos antes de 1994”? E aí realmente pode ser uma questão de falsa memória coletiva.

Estamos tão acostumados a ouvir que até a Copa de 1994 os juízes só usavam preto – e lá se vão quase 30 anos desde aquela Copa – que cristalizamos isso como uma regra nas nossas memórias.

Pois bem, uma falsa memória, conforme demonstrado neste artigo.

1- Eram três na Copa de 1994: amarelo, rosa e cinza. Mas havia um quarto modelo da coleção, azul, não usado na Copa, mas que esteve na Euro de 1996.

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